Justiça do Trabalho determina maior indenização da história do país em caso de exploração laboral; valor será destinado a fundo estadual para erradicação do trabalho análogo à escravidão
Condenação histórica
A Justiça do Trabalho do Pará determinou que a multinacional Volkswagen pague R$ 165 milhões em indenização por dano moral coletivo, em virtude da exploração de trabalhadores em condições análogas à escravidão na Fazenda Vale do Rio Cristalino, também conhecida como Fazenda Volkswagen, em Santana do Araguaia, sudeste do estado. Os abusos ocorreram entre 1974 e 1986, segundo a ação movida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT).
O valor será repassado ao Fundo Estadual de Promoção do Trabalho Digno e de Erradicação do Trabalho em Condições Análogas à de Escravo no Pará (Funtrad/PA). A decisão foi publicada na sexta-feira (29/08) e ainda cabe recurso.
Servidão por dívida, violência e submissão
O magistrado responsável pelo caso destacou que “relatórios oficiais, testemunhos de trabalhadores e documentos de órgãos públicos evidenciam que o modelo de produção incluía práticas de servidão por dívida, violência e submissão a condições degradantes, caracterizando o núcleo do trabalho escravo contemporâneo”.
De acordo com o MPT, centenas de trabalhadores foram submetidos a vigilância armada, alojamentos precários, alimentação insuficiente e ausência de assistência médica, sobretudo para aqueles acometidos por malária.
A ação civil pública, ajuizada em dezembro de 2024, se baseou em denúncias da Comissão Pastoral da Terra e em relatório elaborado pelo padre Ricardo Rezende Figueira. O MPT também utilizou inquéritos policiais, ações judiciais, certidões e depoimentos em cartório para comprovar as irregularidades.
Funcionários aliciados e submetidos à exploração
A Fazenda Vale do Rio Cristalino empregava cerca de 300 pessoas, incluindo pessoal administrativo, vigilantes e vaqueiros. As violações de direitos humanos foram concentradas principalmente nos lavradores e peões, responsáveis por derrubar a floresta para transformar a área em pasto.
Muitos eram aliciados em pequenos povoados de Mato Grosso, Goiás e no atual Tocantins por empreiteiros conhecidos como “gatos”. Na chegada à fazenda, uma guarita com seguranças armados controlava a entrada e saída. Os trabalhadores ainda precisavam adquirir utensílios e mantimentos em uma cantina, contraindo dívidas que os impediam de deixar o local, mesmo em caso de doença.
Pedido de desculpas e reparação social
Além da indenização, o MPT requereu que a Volkswagen reconheça publicamente sua responsabilidade e peça desculpas aos trabalhadores afetados e à sociedade.
“Trata-se de uma sentença histórica. A maior condenação por trabalho escravo contemporâneo da história do Brasil, envolvendo uma das maiores empresas do mundo”, afirmou o procurador Rafael Garcia, responsável pelo caso. Segundo ele, a decisão demonstra que a exploração laboral é imprescritível, podendo ser objeto de reparação mesmo décadas após os fatos.
Apoio da ditadura militar ao empreendimento
O projeto agropecuário da Volkswagen recebeu financiamento público da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) durante a ditadura militar (1964-1985). A fazenda ocupava 139 mil hectares e tinha como objetivo a derrubada da vegetação nativa para a criação de gado, alinhada à política de ocupação da Amazônia do governo militar.
Em 2020, a empresa firmou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o MPT e os ministérios públicos Federal e de São Paulo para indenizar ex-trabalhadores perseguidos ou torturados em outro caso relacionado à ditadura, destinando R$ 36,3 milhões.
Posicionamento da Volkswagen
O juiz Otavio Bruno da Silva Ferreira, da Vara do Trabalho de Redenção (PA), afirmou que a empresa “não apenas investiu na Fazenda Vale do Rio Cristalino, como também participou ativamente de sua condução estratégica, beneficiando-se da exploração ilícita da mão de obra”.
Em nota, a Volkswagen declarou que cumpre rigorosamente todas as leis trabalhistas, defende a dignidade humana e discorda da decisão judicial, anunciando que recorrerá. A empresa ressaltou seu compromisso com a responsabilidade social, “intrinsecamente ligada à sua conduta como empregadora e pessoa jurídica”.