Suspeitas de tentativa de fuga e uso de perfis falsos nas redes sociais reforçam questionamentos sobre a credibilidade do acordo de delação que sustenta parte da acusação de tentativa de golpe de Estado
A validade do acordo de colaboração premiada firmado pelo tenente-coronel Mauro Cid, peça central nas investigações sobre a suposta tentativa de golpe de Estado atribuída ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), volta a ser objeto de intenso debate jurídico. As dúvidas se intensificaram após revelações envolvendo uma suposta tentativa de fuga do delator e o uso de contas de terceiros para discutir os termos da delação.
Suposta fuga e uso de contas de terceiros ampliam pressão sobre Cid
Reportagem da revista Veja apontou que Cid teria utilizado perfis no Instagram, atribuídos a sua esposa, para comentar aspectos da colaboração com pessoas externas ao processo, o que violaria cláusulas do acordo homologado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Em paralelo, surgiram suspeitas de que o militar teria buscado meios para deixar o país, recorrendo a sua cidadania portuguesa.
A defesa de Cid nega as acusações. Sustenta que as contas mencionadas pela reportagem não pertencem à esposa do militar e afirma que as mensagens divulgadas são falsas. Os advogados solicitaram abertura de investigação para apurar a autenticidade do material.
Em resposta, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, determinou que a Meta, proprietária do Instagram, forneça informações detalhadas sobre os perfis em questão, incluindo registros de acesso e mensagens trocadas desde maio de 2023, data em que o acordo de colaboração foi firmado.
Além disso, Moraes exigiu que o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro prestasse novo depoimento à Polícia Federal, na última sexta-feira (13), para esclarecer se teria solicitado a emissão de um passaporte português. No mesmo dia, Gilson Machado (PL), ex-ministro do Turismo, foi preso sob suspeita de ter intermediado junto ao consulado português no Recife a liberação do documento para Cid. Ambos negam as acusações.
Processo contra Bolsonaro avança mesmo com crise na delação
O inquérito em curso no STF tem como réus, além de Bolsonaro e Cid, outros seis ex-integrantes do governo, entre eles três generais do Exército. Eles são acusados de articular uma ruptura democrática no final de 2022, com o objetivo de impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Apesar dos questionamentos, especialistas afirmam que uma eventual anulação da delação de Cid não resultaria automaticamente no arquivamento do processo. Segundo juristas ouvidos pela BBC News Brasil, o andamento da ação penal dependerá da robustez de outras provas já apresentadas.
“O processo não se fundamenta exclusivamente na colaboração de Mauro Cid”, afirma o criminalista Leonardo Yarochewsky, professor e doutor em Ciências Penais. Segundo ele, há diversos elementos probatórios que sustentam a acusação, o que limita o impacto de uma eventual anulação.
Críticas à falta de regulamentação sobre anulação de delações
Para o advogado Maurício Dieter, professor da Universidade de São Paulo (USP), a situação de Cid expõe o que chama de “limbo jurídico” envolvendo a delação premiada no Brasil. Dieter destaca a ausência de uma legislação clara que discipline os efeitos da anulação parcial ou total desses acordos.
“É escandalosa a falta de previsão legal sobre os motivos e consequências da anulação de uma delação, tanto para o delator quanto para terceiros envolvidos”, afirma o professor. Ele alerta que o atual vácuo legal concede ao magistrado amplo poder discricionário para definir os efeitos de uma eventual rescisão.
Dieter também lembra que o colaborador não tem direito ao silêncio. “O delator tem o dever de lealdade com a acusação. Qualquer tentativa de omissão, fuga ou manipulação de informações pode afetar gravemente a validade do acordo.”
O jurista avalia que um pedido de prisão preventiva contra Cid, caso tenha de fato havido tentativa de fuga, seria juridicamente justificável. Segundo informações do jornal Folha de S.Paulo, Moraes teria determinado a prisão de Cid, mas recuado antes da execução da medida — decisão que permanece sob sigilo no STF.
“Em casos como esse, a prisão preventiva é possível, sobretudo para garantir a aplicação da lei penal”, concluiu Dieter.
Mudanças de versão e contradições alimentam desconfiança
A defesa de outros réus na ação penal tem explorado as contradições de Cid ao longo do processo para tentar desqualificar sua colaboração. Desde que firmou o acordo, o militar alterou versões, omitiu informações relevantes e se envolveu em episódios que comprometeram sua credibilidade.
Em março de 2024, por exemplo, Cid voltou a ser preso por obstrução de Justiça e descumprimento de medidas cautelares, após o vazamento de áudios em que alegava ter sido pressionado pela Polícia Federal a incriminar outras autoridades.
Na ocasião, durante audiência com Moraes, o militar se retratou e conseguiu a liberdade provisória. Dois meses depois, em nova oitiva, foi advertido pelo ministro que aquela seria sua “última chance” para falar a verdade, sob risco de voltar à prisão.
Delator admitiu discussões sobre golpe, confirmadas por generais
Em seu depoimento, Cid relatou que Bolsonaro discutiu com ministros e oficiais a possibilidade de decretar Estado de Sítio ou de Defesa para se manter no poder após a derrota nas urnas. Essa versão foi corroborada por testemunhos como os do general Freire Gomes, ex-comandante do Exército, e do almirante Carlos de Almeida Baptista Júnior, ex-comandante da Aeronáutica.
Ambos afirmaram ao STF que Bolsonaro lhes apresentou a proposta de ruptura institucional, prontamente rejeitada por eles.
O próprio ex-presidente, em depoimento recente ao Supremo, admitiu ter discutido “alternativas” para reverter o resultado das eleições, mas alegou que todas as possibilidades foram descartadas por não se enquadrarem na Constituição.
Impacto da eventual anulação da delação
Para o criminalista Aury Lopes Júnior, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, o maior prejudicado com uma possível anulação da delação seria o próprio Mauro Cid.
“O processo como um todo perde pouco ou quase nada com a rescisão da delação premiada”, comentou Lopes Júnior nas redes sociais. “As provas produzidas permanecem válidas, a menos que sejam declaradas ilícitas.”
Segundo o especialista, a consequência mais imediata para Cid seria a perda dos benefícios legais que obteve com a colaboração.
Histórico de polêmicas envolvendo Mauro Cid
A trajetória de Mauro Cid desde sua prisão em maio de 2023 tem sido marcada por uma série de controvérsias. Inicialmente detido durante investigação sobre fraudes em cartões de vacinação, o militar passou a ser investigado também por envolvimento no desvio de joias recebidas pelo governo Bolsonaro.
Além disso, sua delação enfrentou sucessivos momentos de instabilidade, incluindo prisões, vazamento de áudios e novas convocações para esclarecimentos.
Em novembro do ano passado, a PF apontou omissões relevantes em seu depoimento, como o não relato do suposto plano denominado “Punhal Verde e Amarelo”, que teria como objetivo assassinar Lula, o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) e o ministro Alexandre de Moraes no fim de 2022. As defesas dos acusados negam veementemente a existência desse plano.
Depoimento recente e defesa das partes envolvidas
No último depoimento à Polícia Federal, Cid negou qualquer intenção de deixar o país. Alegou que a viagem de familiares aos Estados Unidos, em maio, estava previamente agendada, com passagens de volta marcadas para o dia 20 de junho.
O militar também rebateu, em entrevista ao portal UOL, a acusação de que teria solicitado a Gilson Machado a intermediação para obtenção de passaporte português. Segundo sua defesa, o processo de solicitação de cidadania foi iniciado em janeiro de 2023, dentro da normalidade.
Por sua vez, Gilson Machado, ao falar com jornalistas em Recife, negou ter agido em benefício de Cid e explicou que apenas solicitou um passaporte para o próprio pai, de 85 anos, por meio de um telefonema ao consulado português.
“Jamais estive presencialmente em qualquer consulado, nem no Brasil nem no exterior”, afirmou o ex-ministro, ao concluir: “A justiça de Deus tarda, mas não falha.”