Unicef aponta relação direta entre avanço dos produtos industriais e explosão da obesidade infantil no mundo
Um relatório divulgado pelo Unicef em dezembro de 2025 reacende o debate sobre a qualidade da alimentação infantil. A análise, alinhada às conclusões da Lancet Series 2025, revela um cenário preocupante: o número de crianças e adolescentes em idade escolar com sobrepeso ou obesidade dobrou entre 2000 e 2022, saltando de 194 milhões para 391 milhões.
A tendência global também se reflete no Brasil. O Relatório Público do Sistema Nacional de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan) de 2022 já havia apontado o aumento de diagnósticos de obesidade entre crianças brasileiras. Segundo os dados da Atenção Primária à Saúde, 340 mil crianças de 5 a 10 anos foram classificadas com obesidade até setembro daquele ano.
O papel dos ultraprocessados no avanço da obesidade infantil
O estudo do Unicef não se limita a quantificar o problema: ele identifica sua principal causa. O documento destaca que o consumo de alimentos ultraprocessados — produtos que saciam, mas não nutrem — está no centro da epidemia de obesidade infantil.
“A gente entende que as crianças são especialmente vulneráveis a esses alimentos e a toda exposição porque, até uma certa idade, elas ainda não escolhem o que elas consomem. Elas vivem em um mundo em que o marketing dos ultraprocessados é muito agressivo. Ele está em todos os locais onde as crianças estão, o que torna impossível a não exposição a esses alimentos que são muito palatáveis, mas que fazem mal para a saúde a longo prazo”, afirmou Stephanie Amaral, porta-voz do Unicef no Brasil.
Produtos que aparentam ser saudáveis — como pães de forma, batatas fritas congeladas, barras de cereal, iogurtes aromatizados e sucos industrializados — escondem altas concentrações de açúcar, gordura, sódio e aditivos químicos. Em contrapartida, oferecem quantidades mínimas de fibras, vitaminas e minerais.
A estratégia de marketing reforça a confusão: embalagens coloridas, com frutas e cereais, sugerem benefícios inexistentes. Muitas vezes, esses produtos exibem “alegações nutricionais” que não correspondem às necessidades reais de uma criança.
Stephanie Amaral alerta para a importância da rotulagem: “A rotulagem frontal se refere aos alertas que vêm na frente do alimento. No Brasil, foi instituído como uma lupa, que informa se aquele alimento tem alto teor de sódio, gorduras e açúcares adicionados”.
Fome, pobreza e ultraprocessados: a combinação que alimenta a obesidade
A associação histórica entre sobrepeso e abundância não se sustenta no contexto atual. Hoje, alimentos ultraprocessados são mais baratos e acessíveis do que opções naturais. Um simples comparativo entre o preço de um macarrão instantâneo e o de um quilo de tomate evidencia essa disparidade.
O estudo mostra que, enquanto países desenvolvidos já têm dietas infantis dominadas por ultraprocessados, nações emergentes — como o Brasil — vivem uma transição acelerada. Em países de baixa renda, o consumo ainda é menor, mas cresce rapidamente. Em todos os cenários, a desigualdade no acesso a alimentos frescos é determinante.
“O Brasil saiu do mapa da fome, isso é uma celebração enorme, mas a gente precisa sempre refletir: sair da fome para comer qualquer coisa? Não, a gente precisa sair da fome para garantir a segurança alimentar e nutricional”, reforçou Amaral.
Ela acrescenta que a origem da obesidade e da desnutrição é comum: “a pobreza e as desigualdades sociais levam tanto à fome extrema e à desnutrição quanto a outros níveis de insegurança alimentar que pode ser a obesidade associada a um outro tipo de desnutrição”.
Escolas como espaços de proteção alimentar
Ao longo dos cerca de 14,5 anos que um estudante brasileiro permanece na educação básica, a alimentação escolar desempenha papel central. O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) garante refeições e educação nutricional, suprindo até 70% das calorias diárias necessárias.
A Lei nº 11.947, de 2009, consolidou a alimentação escolar como direito. Hoje, o programa busca não apenas combater a fome, mas assegurar refeições nutritivas.
“O PNAE traz a redução de ultraprocessados. Ele vem diminuindo gradualmente ao longo dos anos. Agora, está em 15% para diminuir para 10%. Ele traz a agricultura familiar, então não contém agrotóxicos, além de fortalecer a cultura local”, explicou Amaral.
Entretanto, o alcance do PNAE se limita às escolas públicas. Nas instituições privadas, a alimentação depende das famílias e das cantinas — terreno fértil para o marketing dos ultraprocessados.
“O Unicef vem com o argumento de que a gente precisa que a escola seja um local de proteção da criança e do adolescente em relação à publicidade agressiva desses alimentos”, afirmou a porta-voz.
O decreto presidencial 11.821, de 2023, estabelece que escolas saudáveis devem ser livres de publicidade e venda de ultraprocessados, com a expectativa de que a medida seja incorporada por legislações municipais.
“Nas escolas livres de ultraprocessados, é possível proteger a criança, oferecer e educar para uma alimentação saudável”, destacou Amaral.
Consequências da má alimentação e riscos à saúde
A obesidade é uma doença crônica influenciada tanto pela genética quanto pelo ambiente. Duas pessoas com predisposição genética podem ter desfechos completamente distintos dependendo do acesso a alimentos naturais ou ultraprocessados.
Além de aumentar o risco de diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares, problemas articulares e respiratórios, a obesidade infantil compromete o desenvolvimento escolar e emocional.
“Existem fatores de risco cardiometabólicos, hipertensão, perfis lipídicos anormais, risco de desenvolver diabetes tipo 2, menor desempenho escolar, problema de saúde mental, ansiedade, depressão e hiperatividade”, detalhou a especialista.
Um chamado global para transformar sistemas alimentares
Segundo o Unicef, o estudo não busca alarmar, mas mobilizar. Ele evidencia que os sistemas alimentares falham ao não garantir alimentos nutritivos, acessíveis e sustentáveis, ao mesmo tempo em que inundam o mercado com produtos ultraprocessados.
Entre as recomendações do Unicef e da Organização Mundial da Saúde (OMS) estão:
- proteção ao aleitamento materno e à alimentação complementar;
- criação de ambientes alimentares escolares saudáveis;
- restrições ao marketing de alimentos;
- rotulagem clara e acessível;
- políticas de subsídios e taxação;
- reformulação de produtos alimentícios.



