Relatório da Vital Strategies aponta que diminuir uma dose de bebida alcoólica por dia teria impacto direto na prevenção de tumores como os de fígado, mama e intestino
A diminuição do consumo diário de álcool no Brasil pode representar um marco na prevenção do câncer. Segundo relatório da organização internacional Vital Strategies, se cada brasileiro que consome bebidas alcoólicas reduzisse uma dose por dia — o equivalente a uma lata de cerveja de 330 ml ou cerca de 12 gramas de álcool — cerca de 157,4 mil mortes por câncer poderiam ser evitadas até o ano de 2050.
A estimativa foi gerada por uma nova plataforma digital desenvolvida pela entidade, que cruza dados populacionais com evidências científicas sobre os riscos do álcool para diferentes tipos de câncer. A ferramenta considera padrões de consumo por idade e gênero, além de projeções de mortalidade por tipo de tumor.
Entre os cânceres mais associados ao consumo de álcool estão os de esôfago, fígado, boca, laringe, mama e colorretal. Globalmente, estima-se que entre 11 e 14 milhões de pessoas morrerão por câncer até 2050, sendo mais de 415 mil dessas mortes atribuíveis ao álcool.
A médica Mary-Ann Etiebet, CEO da Vital Strategies, defende que políticas públicas semelhantes às aplicadas contra o tabagismo podem ser eficazes na redução do consumo de álcool. “No Brasil, vimos uma redução de 74% no consumo de cigarro [desde 1989] com diferentes políticas, reformas legais, regulatórias, campanhas educativas. E vimos a prevalência do câncer de pulmão cair também. Sabemos que essas políticas funcionam e sabemos como fazê-las”, afirmou durante evento no Centro Brasileiro Britânico, em São Paulo.
Etiebet, que iniciou sua trajetória profissional em programas de HIV/Aids na Nigéria e liderou iniciativas globais na farmacêutica Merck, destaca que países como Finlândia, Dinamarca, Lituânia e Sérvia já adotam estratégias mais avançadas de controle do álcool. “Isso pode ser feito por iniciativas dos governos mas também com engajamento, educação e aumento da consciência do público”, disse.
No Brasil, cerca de 50% da população adulta consome bebidas alcoólicas. Esses produtos estão incluídos na primeira fase da reforma tributária, que prevê a criação de um imposto seletivo para itens prejudiciais à saúde, com o objetivo de desestimular o consumo.
A OMS (Organização Mundial da Saúde) recomenda que os países intensifiquem ações para reduzir em 20% o consumo de álcool até 2030. Além do câncer, há pelo menos outras 24 doenças associadas ao uso da substância, como cirrose, epilepsia, hipertensão, hemorragia cerebral, cardiopatias e agravos por violência e acidentes de trânsito.
Etiebet ressalta que a população ainda não reconhece plenamente a ligação entre álcool e câncer. “As pessoas perdem 30 dias de trabalho [no ano] para cuidar de um membro da família sofrendo de câncer. Ou não vão trabalhar um dia por mês por causa do álcool. Essas coisas estão ligadas à produtividade, à renda e ao desenvolvimento econômico”, explicou.
Em 2022, o SUS (Sistema Único de Saúde) gastou R$ 3,9 bilhões com tratamento de câncer. Esse valor deve crescer 68% até 2040, com a estimativa de quase um milhão de novos casos no país.
Estudos apontam que metade das mortes por câncer está relacionada a fatores modificáveis, como alimentação inadequada, sedentarismo, tabagismo, poluição e consumo de álcool. A médica alerta para a influência das indústrias de tabaco, álcool e alimentos ultraprocessados na formulação de políticas públicas. “Há interferência da indústria em todo o processo de regulações, legislações, normas. Eles trazem a má ciência e muita desinformação para essas conversas e isso não deveria ser permitido.”
Ela também critica a narrativa de que escolhas ruins de saúde são exclusivamente responsabilidade individual. “Se você é obeso é porque não tem força de vontade para fazer dieta ou disciplina para o exercício. Mas se você mora em um deserto alimentar, sem opções de comida saudável, você não pode fazer essa escolha”, afirmou.
Como funciona a plataforma da Vital Strategies
A ferramenta utiliza simulações com três cenários de redução de consumo: 12, 24 e 36 gramas de álcool por dia. A metodologia se baseia em dados públicos como o estudo Global Burden of Disease (GBD) e informações da Agência Internacional para Pesquisa em Câncer, vinculada à OMS. A partir disso, calcula-se a fração atribuível da população ao risco relativo de câncer por nível de consumo, idade e gênero.