Por Wilton Emiliano Pinto *
Entre papéis esquecidos no fundo de uma gaveta, encontrei vestígios de um dia especial. Eram anotações de um retiro espiritual, onde falávamos sobre a criança que um dia fomos e que, de alguma forma, ainda vive dentro de nós. Relendo aqueles rabiscos, percebi que aquela experiência ainda tinha muito a me dizer.
Foi quando, diante do espelho, fechei os olhos e tentei reencontrá-lo. Ele não veio de imediato. Talvez estivesse escondido, acuado pelo tempo, adormecido entre memórias que insisti em empilhar sem muita ordem. Mas, aos poucos, foi surgindo. Primeiro, como um lampejo tímido – um cheiro de terra molhada, o som distante de um riso solto que eu já não sabia se era dele ou meu.
E então, lá estava ele: o menino que um dia fui.
Descalço, pernas finas marcadas por arranhões, cabelos desgrenhados pelo vento das tardes despreocupadas. Olhou-me com um misto de curiosidade e desconfiança, como quem se perguntava o que eu havia feito com os anos que ele me deu.
— Não voltaremos a ter esta idade — murmurei, quase como um pedido de desculpas.
Ele apenas balançou a cabeça. Já sabia. Sempre soube.
O tempo não tem piedade dos adultos, mas é gentil com as crianças. Elas não contam os dias, não carregam arrependimentos, não questionam se fizeram as escolhas certas ou erradas. Apenas vivem.
Foi então que compreendi o verdadeiro propósito daquele encontro espiritual: resgatar o menino que ainda mora em mim.
Pensei que era eu quem o buscava. Mas, ao vê-lo ali, tão leve, tão inteiro, percebi que era ele quem tentava me resgatar.
— Você se lembra? — perguntou, enquanto rabiscava com um graveto no chão de terra.
Sim, eu lembrava.
Lembrava da sensação de liberdade ao subir em uma árvore sem pensar na altura nem na queda. Do cheiro do café coado na cozinha da minha mãe, enquanto esperava ansioso por um pedaço de pão quente com manteiga. Do barulho da chuva batendo no telhado, das noites em que meu pai entrava no quarto, ajeitava meu cobertor e me fazia sentir protegido.
Lembrava da inocência de acreditar que os adultos sabiam todas as respostas. Mal sabia que, um dia, eu seria um deles e passaria a vida inteira tentando entender as perguntas.
— Venha viver este setembro — sussurrei, sentindo um aperto no peito.
O menino sorriu e deu de ombros, como se dissesse: E daí?
Para ele, todo setembro era único. Havia os de pipas no céu, os de tempestades inesperadas, os de tardes preguiçosas onde o tempo parecia não ter pressa. Ele não se preocupava com os setembros que viriam ou com os que já tinham ido. Apenas vivia o que tinha diante dos olhos.
— Nunca mais serei você… — minha voz falhou.
Essa era a verdade mais dura. Nunca mais teria aquele olhar encantado, aquela fé inabalável de que tudo sempre daria certo. A vida me ensinou sobre perdas, despedidas, sobre o peso dos dias. E, sem perceber, fui deixando a criança para trás.
Mas ali, naquele instante, ele segurou meu braço e me olhou nos olhos – os mesmos olhos, apesar dos anos que nos separavam.
“Sempre estive aqui”, parecia dizer. “Nunca parti de verdade”. Apenas me aquietei sob o peso das responsabilidades, das incertezas do amanhã e da pressa com que você atravessa os dias sem realmente vivê-los.”
Então, ele soltou minha mão, deu um passo para trás e começou a desaparecer, como um sonho ao amanhecer. Mas antes que sumisse por completo, ouvi sua voz uma última vez:
— A melhor escolha que você pode fazer é investir na sua felicidade e priorizar o que realmente traz paz ao seu coração.
Quando abri os olhos, não vi mais aquele garoto, só minha imagem, já desgastada pelo tempo. O retiro, a sala, as pessoas ao redor – tudo parecia que estava lá do mesmo jeito, mas, desde aquele momento, eu não era mais o mesmo.
Todo o tempo eu soube: aquele menino ainda mora em mim.
E, enquanto eu lembrar de carregar sua essência no peito, nenhum setembro será realmente perdido.

Funcionário Público aposentado e gosta de uma boa prosa.