Medidas comerciais dos EUA contra Índia, Brasil, China e África do Sul fortalecem unidade do bloco e ampliam esforços por integração econômica independente
Casa Branca amplia tarifaço contra países do Brics
A política tarifária do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, vem sendo apontada como um fator que, de forma indireta, fortalece a coesão do Brics. Nesta quarta-feira (27), a Índia foi atingida por um aumento de 50% nas tarifas de importação, metade delas em represália pela compra de petróleo russo.
O Brasil também entrou na lista de países sujeitos à mesma alíquota, em uma medida interpretada como tentativa de pressionar o governo a rever o julgamento por tentativa de golpe de Estado contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, aliado político de Trump. Embora parte dos produtos brasileiros tenha sido poupada, a tarifa geral imposta por Washington está entre as mais elevadas do mundo.
A China, principal economia do Brics, enfrenta a ameaça de taxas de até 145% caso não alcance acordo com os EUA. Já a África do Sul foi alvo de tarifas de 30%, e até novos integrantes, como o Egito, podem sofrer sanções pelo simples fato de participarem do bloco.
Especialistas veem incentivo involuntário à integração
Para Ajay Srivastava, ex-funcionário do órgão de comércio externo da Índia, as penalidades “dão ao Brics um incentivo comum para reduzir sua dependência dos EUA, mesmo que suas agendas divirjam”. Ele afirmou à DW que as sanções não intimidam os países, mas os aproximam.
Segundo o jornal alemão FAZ, Narendra Modi, premiê indiano, ignorou quatro ligações de Trump nas últimas semanas. O episódio reforça a percepção de que Nova Délhi busca reduzir a vulnerabilidade frente a Washington.
O tarifaço já estimula medidas práticas: os países do bloco ampliam acordos bilaterais em moedas próprias, reforçam a compra de ouro e sinalizam intenção de diminuir o peso do dólar em suas reservas.
Lula pede resposta conjunta e críticas a Trump se intensificam
No início de agosto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva defendeu uma reação coordenada do Brics. A declaração veio após Trump afirmar que “o Brics está morto”, comentário que provocou reação de analistas. Um pesquisador classificou a postura do republicano como “negligência estratégica”, por unir na prática países de interesses diversos contra os Estados Unidos.
Em artigo publicado no Washington Post, Max Boot, membro do Council on Foreign Relations, afirmou que Trump estaria “diminuindo o poder dos EUA ao unir, de forma perversa, aliados da América com nossos inimigos”.
Modi retorna à China em meio a cúpula regional
A aproximação também será evidenciada durante a reunião da Organização para Cooperação de Xangai (SCO), em Tianjin, no norte da China. O encontro reunirá Xi Jinping, Narendra Modi e Vladimir Putin, além de líderes de mais de 20 países do Sul Global. Será a primeira visita de Modi à China em sete anos.
O Kremlin articula ainda um encontro trilateral entre China, Rússia e Índia, o primeiro em seis anos, para reforçar o núcleo do Brics e suavizar tensões históricas entre Nova Délhi e Pequim.
Índia recalibra postura diante de Pequim
As tarifas impostas pelos EUA estimularam a Índia a flexibilizar restrições de visto, retomar voos diretos e expandir conversas comerciais com a China. Os dois países discutem soluções para disputas na fronteira de 3.500 quilômetros e negociam maior fornecimento de minerais de terras raras, controlados em mais de 85% por Pequim.
Apesar dos avanços, especialistas mantêm ceticismo. Shilan Shah, da Capital Economics, lembrou que os laços estreitos da China com o Paquistão e projetos como a construção de uma barragem no Tibete levantam desconfiança em Nova Délhi. Além disso, a dependência indiana da tecnologia e do mercado americano — que absorveu US$ 77,5 bilhões em exportações do país em 2024 — limita o alcance da cooperação.
Brasil e África do Sul reforçam compromissos
O Brasil também busca estreitar laços com a China, que já responde por 26% de suas exportações, o dobro do volume destinado aos EUA. Durante conversa telefônica recente, Xi Jinping e Lula trataram de novos acordos bilaterais.
A Rússia, por sua vez, fortalece seu alinhamento estratégico com Pequim: mais de 90% do comércio bilateral entre os dois países ocorre em yuan e rublos. Já a África do Sul reafirma sua permanência no bloco. Para Sanusha Naidu, pesquisadora do Instituto para o Diálogo Global, o governo sul-africano não pretende recuar em compromissos relacionados a comércio, tecnologia e governança global.
Divergências internas podem limitar ambições
Com a recente expansão de cinco para dez membros, o Brics enfrenta desafios para conciliar interesses nacionais distintos. Srivastava, fundador da Iniciativa de Pesquisa Comercial Global, avalia que o grupo não busca “unidade perfeita, mas cooperação pragmática em comércio, finanças e cadeias de abastecimento”.
Estudo do Boston Consulting Group mostra que o comércio intra-Brics cresce mais rápido que o comércio com o G7, mas ainda enfrenta mais barreiras internas que o observado no Ocidente.
Mihaela Papa, do MIT, projeta crescimento da relevância do comércio dentro do bloco, com campanhas “Compre Brics” e iniciativas como a bolsa de grãos e mecanismos de liquidação em moeda local. Já a proposta de uma moeda única segue indefinida, enquanto alternativas paralelas em yuan, rupia e rublo devem ganhar espaço.
Análise: efeito contrário ao pretendido por Washington
Embora o dólar siga dominante, especialistas indicam que a pressão tarifária de Trump acelera o fortalecimento de sistemas paralelos de comércio e finanças. O movimento não deve destronar a moeda americana, mas pode reduzir gradualmente seu monopólio.
Na tentativa de enfraquecer o Brics, a estratégia de Trump pode estar, inadvertidamente, contribuindo para torná-lo mais coeso e influente no cenário internacional.
( Com DW )