Retirada do regime de urgência expõe resistências políticas e mantém incerteza sobre cronograma defendido por Lula e pela Comissão Europeia
Prometido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para ser concluído até 20 de dezembro, o acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul enfrentou um revés nesta semana. A primeira tentativa de acelerar a tramitação no Parlamento Europeu fracassou após a retirada do regime de urgência da pauta, diante da avaliação de que a proposta poderia ser derrotada em plenário.
Pressão política trava avanço do texto
A iniciativa de acelerar a votação partiu do Partido Popular Europeu (PPE), maior bancada da Casa e principal base de apoio à presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. O objetivo era aprovar rapidamente salvaguardas negociadas para reduzir a resistência ao tratado e preservar um calendário mais curto de análise.
Em setembro, o texto avançou após concessões a países historicamente críticos ao acordo, como França e Polônia. Entre as mudanças incorporadas estão as chamadas cláusulas-espelho, que exigem que produtos importados da América do Sul cumpram os rigorosos padrões sanitários e ambientais da União Europeia.
Salvaguardas e monitoramento de mercado
As negociações também incluíram mecanismos de proteção aos mercados europeus diante de oscilações bruscas nas importações. Pelo modelo em debate, variações superiores a 10% em qualquer um dos 27 países do bloco poderiam acionar investigações por parte de Bruxelas.
Para viabilizar esse controle, a Comissão Europeia prometeu um sistema de monitoramento quase em tempo real dos preços. O foco das preocupações recai especialmente sobre os setores de carne bovina e de aves, áreas nas quais o Brasil é um dos principais exportadores globais e que enfrentam maior resistência de produtores europeus.
Influência da ultradireita e resistências internas
A decisão do PPE de recuar do regime de urgência empurra o texto para a tramitação regular, por meio da comissão de comércio, com votação prevista apenas para dezembro. Em tese, isso mantém de pé o cronograma anunciado tanto por Lula quanto por autoridades europeias.
O episódio, no entanto, evidencia o peso crescente da ultradireita no Legislativo europeu. Grupos nacionalistas e populistas têm explorado o descontentamento do setor agrícola, que enfrenta crise estrutural apesar dos volumosos subsídios — estimados em € 387 bilhões entre 2021 e 2027.
Mesmo dentro do PPE, eurodeputados de países como França, Polônia, Irlanda e Romênia se posicionaram contra a tramitação acelerada. Na França, a Assembleia Nacional aprovou nesta quinta-feira (27) uma nova resolução simbólica de oposição ao acordo.
Caminho institucional e próximos passos
Para contornar resistências nacionais, o tratado foi desmembrado de modo que a parte comercial não precise passar por todos os Parlamentos dos Estados-membros. Essa etapa depende apenas da aprovação no Conselho da União Europeia e no Parlamento Europeu. No Conselho, a vitória política já é considerada assegurada, com apoio decisivo de países como Alemanha e Espanha, que enxergam no acordo uma oportunidade de aliviar a economia europeia, pressionada por tarifas dos Estados Unidos, pela concorrência chinesa e pelo aumento dos gastos com defesa.
No Parlamento, a maioria tende a apoiar a Comissão, mas o desfecho dependerá do alinhamento — ou não — entre os extremos do espectro político. Além da ultradireita, partidos de esquerda e o Partido Verde mantêm reservas, sobretudo por razões ambientais, como o impacto da produção de carne e o desmatamento no Brasil.
Questionamentos jurídicos e horizonte do acordo
Um grupo de eurodeputados chegou a pedir que a presidente do Parlamento, Roberta Metsola, avaliasse junto ao setor jurídico a necessidade de submeter o acordo ao Tribunal de Justiça da União Europeia. O pedido foi negado, sob o argumento de que o tema será analisado no momento oportuno.
Negociado há mais de 20 anos, o acordo UE-Mercosul pretende criar uma área econômica de cerca de 750 milhões de consumidores, responsável por aproximadamente um quinto do comércio mundial — um projeto de grande ambição que, mais uma vez, avança em meio a impasses políticos no coração da Europa.