Há histórias que não nascem em nós.
Elas nos atravessam.
Chegam antes da gente, moldam o caminho,
como o rio que, sem pressa, desenha o leito por onde um dia vai correr.
A minha começou assim, antes mesmo do meu primeiro choro.
Tudo começou com um homem.
João Estulano.
Meu avô.
Simples. Determinado.
Vivia em São Joaquim da Barra, interior de São Paulo,
quando o país foi sacudido pela revolta tenentista de 1924.
Os tempos eram duros.
Vovô ficou sabendo que os filhos solteiros, estavam sendo recrutados.
Então ele decidiu partir.
Com coragem e urgência, embarcou com os rapazes num trem da Mogiana,
rumo ao sertão goiano.
Já tinha comprado terras em Pouso Alto, hoje, Piracanjuba.
Ficaram para trás a esposa, Ana, e duas filhas.
Elas viriam depois, encarregadas de vender os bens e trazer o dinheiro.
Mas algo aconteceu no caminho.
Dona Ana, antes firme e centrada, com a possibilidade de cruzar com os revoltosos, se perdeu no medo.
Atravessou a viagem com o peso da solidão.
E quando chegou a Goiás, já não era a mesma.
Foi aí que a fé entrou.
Não a fé dos dogmas, mas a fé que brota quando tudo parece desabar.
Aquela que acolhe e restaura.
Jerônimo Candinho, médium espírita, discípulo de Eurípedes Barsanulfo,
acolheu dona Ana na fazenda Morro do Pico, em Caldas Novas.
Meses de cuidados, passes, preces…
Pouco a pouco, ela voltou a si.
Voltou à vida.
E a gratidão virou obra.
João Estulano ergueu, com as próprias mãos,
o Centro Espírita Luz e Caridade,
usando tijolos feitos na sua fazenda.
Ao redor da pequena construção, nasceram os primeiros casebres.
Depois, casas, ruas, famílias.
Assim nasceu Estulânia,
batizada em homenagem ao seu fundador.
Não por vaidade.
Mas porque ali havia raiz. Fé. Recomeço.
Foi nesse solo que nasci.
Filho de Benedito e Arlinda.
Nossa casa era um lugar simples, cercado de mato, curral e leite fresco.
As manhãs começavam cedo. Sempre.
“Quem dorme muito, perde o dia”, dizia papai.
E a gente obedecia.
Brincávamos com o que a natureza oferecia.
Meu brinquedo preferido era uma atiradeira de milho,
feita por meu irmão Barsanulfo.
Um dia, por travessura, acertei uma vaca.
Ela se assustou, papai perdeu o balde de leite.
A atiradeira… virou cacos.
Ali aprendi que até a diversão tem sua hora certa.
Estulânia era pequena, mas cheia de vida.
O Centro Espírita servia como escola.
Primeiro veio o professor Gabriel.
Depois, Helisa, filha de Candinho.
Mais tarde, papai liderou uma luta:
queria uma escola de verdade.
Buscou prefeito, governador, o apoio do povo, e conseguiu.
O grupo escolar foi construído num terreno doado por vovô.

O professor Arquimedes ficou com a primeira turma.
Tinha voz forte e método rígido.
Sua esposa, dona Conceição, adoçava os dias com sua doçura mansa.
Lembro bem da palmatória, símbolo de um tempo em que se aprendia com dor.
Mas também lembro das gincanas, da tabuada dos risos abafados nas carteiras,
e do leite fresco que papai entregava todos os dias,
sem faltar nem nos feriados.
Mamãe era o coração da casa.
Serena. Firme. Doce.
À noite, à luz de lamparina, contava histórias.
A preferida era Maricota Serelepe,
uma menina levada que nos fazia rir e pensar.
Sob as amoreiras, com os olhos brilhando e os pés no chão de terra,
entendi que amor também educa.
E que a simplicidade é uma forma de sabedoria.
Um dia, durante uma reforma, almoçamos todos do lado de fora.
Mesa improvisada, pratos esmaltados, frango ensopado
e o céu azul por teto.
Era o mesmo frango de sempre.
Mas ali, naquele cenário, teve gosto de festa.
Descobri que os momentos mais simples
guardam as memórias mais duráveis.
Hoje, tantos anos depois, compreendo:
Estulânia não é só um lugar.
É sentimento.
É fé.
É história que corre nas veias, mesmo esquecida nos livros.
Palmelo ficou conhecida como a cidade espírita.
Mas Estulânia foi sua irmã silenciosa.
Também nasceu da luz.
Talvez os tempos modernos tenham afastado os passos da terceira geração.
Mas o que foi plantado ali ainda resiste.
Como os tijolos com a letra “A” de Aprígio , seu fabricante.
Como a escola, ainda de pé, mesmo vazia.
Como os ecos das preces que um dia embalaram corações.
Essa é minha Estulânia.
Um recanto de fé, trabalho, amor e memória.
Um pedaço de mim que o tempo não apaga.
Porque há histórias que não nascem em nós.
Elas apenas nos escolhem para serem contadas.




