Bloqueio imposto por Israel desde março retém alimentos e medicamentos destinados à população de Gaza
Após quase três meses de bloqueio absoluto, o governo de Israel autorizou, no início desta semana, a entrada dos primeiros caminhões com suprimentos humanitários na Faixa de Gaza. A decisão marca uma inflexão na postura do premiê Benjamin Netanyahu, que justificou a medida como forma de preservar o apoio internacional em meio à crescente pressão global.
Segundo a Coordenação das Atividades Governamentais nos Territórios (Cogat), entre os dias 21 e 23 de maio, cerca de 198 caminhões cruzaram a passagem de Kerem Shalom, situada na tríplice fronteira entre Israel, Egito e o território palestino. O carregamento incluía alimentos, farinha, fórmulas infantis, medicamentos e materiais médicos.
Movimento ainda tímido frente à crise humanitária
Embora represente uma retomada parcial, o fluxo atual está muito aquém das necessidades. Durante o cessar-fogo nos primeiros meses do ano, a média diária ultrapassava os 600 caminhões. Hoje, mesmo com a reabertura gradual, a ajuda chega a conta-gotas.
Relatos de campo indicam que os primeiros carregamentos do Programa Mundial de Alimentos (WFP) só alcançaram a população na noite de quinta-feira (23), com a distribuição inicial de farinha a algumas padarias. Os insumos humanitários, entretanto, ficaram retidos por dias nas áreas de coleta à espera de autorizações militares.
“Conseguimos iniciar a entrega dos suprimentos, mas é insuficiente diante da dimensão da crise. São necessários centenas de caminhões por dia. Eles estão prontos, do outro lado da fronteira, sem permissão para avançar”, declarou Martin Frick, diretor do WFP na Alemanha.
Caminhões parados e estoques represados
Grande parte da ajuda humanitária permanece acumulada nas fronteiras. O WFP informa ter mais de 116 mil toneladas de alimentos armazenadas no Egito, Jordânia e Israel — quantidade suficiente para alimentar um milhão de pessoas por quatro meses. Já a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados Palestinos (UNRWA) contabiliza quase 3 mil caminhões prontos para partir.
No entanto, em Kerem Shalom — única passagem atualmente operacional — todas as mercadorias precisam ser descarregadas e recarregadas em novos veículos, o que retarda ainda mais a entrega. Os comboios da ONU seguem impedidos de prosseguir até que as forças militares israelenses liberem o trajeto, paralisando a logística por dias.
Operação envolve ONU, ONGs e países aliados
A principal responsabilidade pela ajuda segue com a UNRWA, encarregada dos abrigos emergenciais e da maior parte dos caminhões parados. O WFP, por sua vez, coordena a compra de alimentos e a operação de 25 padarias — estas, fechadas desde março por falta de combustível, começaram a reabrir nesta semana.
Outras entidades das Nações Unidas, como Unicef e OMS, fornecem vacinas, alimentos terapêuticos e kits médicos. A logística tem apoio de organizações como o Crescente Vermelho de diversos países árabes, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) e ONGs internacionais, como a Islamic Relief.
Apesar dos esforços multilaterais, todos os carregamentos enfrentam o mesmo entrave: o rígido controle israelense sobre inspeções e liberação de rotas. Mesmo a ajuda bilateral de Estados Unidos e União Europeia está sujeita ao mesmo regime de fiscalização.
Israel quer criar centros de distribuição privados
Como alternativa, Israel tem sugerido a criação de “centros seguros de distribuição” no sul de Gaza, geridos por empresas privadas e forças de segurança contratadas. A proposta, que conta com apoio de empresas dos EUA, enfrenta resistência das Nações Unidas, que a consideram incompatível com os princípios de neutralidade humanitária.
Acusações de desvio e impasse logístico
A justificativa oficial de Israel para o bloqueio, iniciado em 2 de março, foi o suposto desvio de suprimentos por parte do Hamas. Sob intensa pressão internacional, o governo israelense cedeu parcialmente, autorizando importações limitadas enquanto negocia um novo sistema de distribuição.
Enquanto isso, toneladas de mantimentos permanecem estagnadas. Além das dificuldades de autorização, há obstáculos operacionais graves: bombardeios, saques, estradas destruídas e a falta crônica de combustível impedem a circulação mesmo das cargas já autorizadas. O resultado é um colapso logístico e o encarecimento vertiginoso de produtos básicos, como o pão.
Ajuda marítima também fracassa
O corredor humanitário marítimo, aberto a partir do Chipre no início de 2024, também não se consolidou. Após uma entrega piloto em março, as operações foram interrompidas após um ataque aéreo israelense atingir um navio da World Central Kitchen (WCK) em abril. Desde então, nenhuma carga civil chegou por mar.
Em maio, os EUA instalaram um píer flutuante ao norte de Gaza, com capacidade para descarregar até 150 caminhões por dia. Embora mais de 8 mil toneladas de ajuda tenham sido entregues em 20 dias, problemas climáticos, questões de segurança e saques interromperam a operação. O Pentágono anunciou oficialmente o encerramento da missão em 17 de julho.
Gaza à beira da fome generalizada
Antes do bloqueio, cerca de 70% da população de Gaza já dependia de ajuda alimentar. Com a paralisação total, a crise se agravou dramaticamente. Segundo levantamento da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), entre 1º de abril e 10 de maio, 93% da população vivia em situação de insegurança alimentar severa — 12% enfrentavam fome extrema.
Para atender aos 2,2 milhões de habitantes com uma dieta básica de 2.100 quilocalorias diárias, Gaza precisaria de aproximadamente 1.300 toneladas de alimentos por dia, o que equivale a 50 caminhões de mantimentos. Considerando também a necessidade de água, medicamentos, combustíveis e itens de higiene, a ONU estima que seriam necessários ao menos 500 caminhões diários.
Com a entrada atual limitada a 100 veículos e a distribuição interna quase paralisada, o território palestino caminha para uma catástrofe humanitária. Caso a situação persista, Gaza será oficialmente classificada como uma zona de fome em larga escala nas próximas semanas.
( Com DW )