Disseminação simultânea de dengue, chikungunya e oropouche sobrecarrega um sistema de saúde fragilizado, amplia o medo da população e deixa sequelas duradouras em milhares de pacientes
A palavra mais repetida hoje nas ruas de Cuba é simples e direta: “o vírus”. Em um país já sufocado pela escassez de alimentos, medicamentos e energia elétrica, a expressão virou sinônimo de uma ameaça difusa que se espalha rapidamente e afeta praticamente todas as famílias. Febre alta, dores intensas nas articulações, vômitos, diarreia e erupções cutâneas se tornaram sintomas recorrentes, enquanto cresce o temor de adoecer a qualquer momento.
Três doenças, um mesmo colapso
O que os cubanos chamam genericamente de “o vírus” corresponde, na prática, à circulação simultânea de três arboviroses: dengue, chikungunya e febre oropouche. O quadro foi reconhecido oficialmente pelo governo e por organismos internacionais, como a Organização Mundial da Saúde e a Organização Pan-Americana da Saúde (OMS/Opas). A esse cenário somam-se infecções respiratórias, incluindo a covid-19, o que amplia a pressão sobre os serviços de saúde.
Relatos vindos de diferentes regiões descrevem cidades com moradores curvados, febris e com dificuldades para caminhar. Em uma mensagem que circulou amplamente nas redes sociais, a jornalista Yirmara Torres Hernández descreveu a cidade de Matanzas como “uma cidade de zumbis”, em referência à aparência abatida da população afetada pela epidemia.
Doença avança em meio à escassez
A propagação das arboviroses ocorre em um momento particularmente crítico. Hospitais enfrentam falta de medicamentos, insumos básicos e capacidade diagnóstica, o que alimenta a percepção de que buscar atendimento médico pouco ajuda. Muitos pacientes optam por se tratar em casa, recorrendo à automedicação, o que dificulta a mensuração real do número de casos.
As autoridades cubanas reconhecem ao menos 47 mortes associadas às arboviroses. Especialistas independentes e ativistas, no entanto, alertam para a possibilidade de subnotificação significativa, com óbitos atribuídos a outras causas. Pessoas ouvidas pela imprensa internacional afirmam conhecer casos recentes de mortes relacionadas à doença em diferentes províncias.
Chikungunya em alta e números incertos
Dados oficiais indicam que os novos casos de chikungunya cresceram 71% em apenas uma semana. Estimativas da Opas apontam quase 26 mil registros da doença no país. Ainda assim, o número real de infectados permanece desconhecido, já que grande parte dos doentes só procura ajuda médica em situações graves.
A experiência de outros países mostra que o problema não é exclusivo de Cuba. A dengue, por exemplo, é registrada no Brasil desde os anos 1980 e vem se expandindo para regiões antes consideradas de baixo risco, inclusive em países desenvolvidos. A chikungunya, identificada na África na década de 1950, espalhou-se rapidamente nas últimas décadas, enquanto o vírus oropouche, detectado pela primeira vez no Caribe, já provocou dezenas de surtos na Amazônia brasileira.
Relatos de dor e sequelas prolongadas
Entrevistas com moradores da ilha revelam um padrão de sofrimento intenso. Dores articulares incapacitantes, febre acima de 39 °C e erupções cutâneas são descritas como marcas comuns da infecção. Mesmo após o fim da fase aguda, muitos pacientes relatam limitações persistentes, com dificuldade para realizar tarefas simples semanas ou meses depois.
A incerteza sobre o diagnóstico exato — se dengue, chikungunya, oropouche ou uma combinação — é frequente, já que exames laboratoriais são raros. Em muitos casos, a recomendação médica se resume à hidratação e ao uso de analgésicos básicos, quando disponíveis.
Sistema de saúde no limite
Embora Cuba historicamente se apresente como uma potência médica, com forte formação profissional e avanços na biotecnologia, a crise econômica dos últimos anos deteriorou profundamente o setor. Hospitais operam sem equipamentos adequados, faltam materiais de higiene e medicamentos essenciais, e a saída de milhares de médicos para o exterior agravou a sobrecarga dos profissionais que permaneceram no país.
Salários baixos, plantões sem cobertura e serviços colapsados tornaram-se rotina. Diante desse cenário, a confiança da população no sistema de saúde diminuiu de forma acentuada.
Ambiente favorece a transmissão
Além das dificuldades no atendimento, fatores estruturais contribuem para a disseminação das doenças. Apagões frequentes impedem o uso de ventiladores e ar-condicionado, facilitando a proliferação de mosquitos. A escassez de água e o acúmulo de lixo em áreas urbanas criam condições ideais para os vetores.
Segundo a OMS/Opas, medidas de vigilância epidemiológica e controle de vetores foram adotadas, com foco nas áreas de maior transmissão. Ainda assim, a combinação entre crise sanitária, infraestrutura precária e mudanças ambientais mantém elevado o risco de novos surtos.
Mortes subnotificadas e futuro incerto
Enquanto o governo mantém os números oficiais, cresce a preocupação com a subnotificação de óbitos e, sobretudo, com as consequências de longo prazo das infecções. As sequelas articulares e neurológicas relatadas por pacientes levantam dúvidas sobre o impacto futuro da epidemia na saúde pública e na capacidade de trabalho da população.
Em um país já marcado por dificuldades econômicas profundas, a expansão silenciosa das arboviroses adiciona uma nova camada de incerteza ao cotidiano cubano — e reforça a sensação de que, para muitos, o pior ainda pode não ter passado.
( Com BBC News Brasil )



