Proposta dos Estados Unidos para usar valores congelados na Europa em projetos liderados por empresas americanas gera resistência e aprofunda divisão com aliados europeus
Líderes europeus reagiram com indignação à proposta do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de direcionar bilhões de dólares em ativos russos congelados na Europa para iniciativas que beneficiariam o governo e empresas americanas. A reação ocorreu após a divulgação de um plano apresentado pela Casa Branca para encerrar a guerra na Ucrânia, considerado desequilibrado e prejudicial aos interesses europeus.
Plano americano amplia atritos com aliados
Na versão inicial do documento, o plano de paz dos EUA previa concessões significativas por parte da Ucrânia, como a cessão de territórios ocupados e a redução do efetivo de suas Forças Armadas. Diante da repercussão negativa, países europeus passaram a articular uma resposta para conter danos e defender uma alternativa própria.
“O conteúdo da proposta muda a cada nova sugestão”, afirmou o secretário de Estado americano, Marco Rubio, após se reunir com representantes europeus em Genebra, no último fim de semana. Ainda assim, permanece incerto se a Europa conseguirá manter influência sobre o destino dos ativos russos bloqueados desde o início do conflito.
Especialistas apontam que esses recursos se tornaram um elemento central da estratégia americana. Para a analista de geoeconomia Agathe Demarais, do Conselho Europeu de Relações Internacionais (ECFR), o interesse de Trump nos bilhões congelados é evidente. “Eles parecem ser o principal atrativo do plano”, avalia.
O que são os ativos russos congelados
Após a invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2022, cerca de 300 bilhões de euros em ativos russos localizados fora do país foram bloqueados como parte das sanções impostas pelo Ocidente. O montante inclui contas bancárias, títulos financeiros, imóveis e bens de alto valor, como iates.
Embora esses ativos estejam distribuídos entre países como Estados Unidos, Reino Unido, Canadá e Japão, a maior parte — aproximadamente 210 bilhões de euros — está em nações da União Europeia. Desse total, cerca de 185 bilhões de euros encontram-se sob custódia da Euroclear, instituição financeira sediada em Bruxelas.
Desde o início da guerra, governos europeus discutem como utilizar esses recursos para que a Rússia arque com os custos da destruição causada pelo conflito. O tema voltou à pauta em uma cúpula realizada em outubro, quando a Bélgica vetou a proposta de um “empréstimo de reparação” destinado à reconstrução da Ucrânia.
Divergências internas na União Europeia
O governo belga tem receio de enfrentar disputas judiciais caso os ativos sejam utilizados diretamente e defende a criação de garantias compartilhadas entre os países do bloco. A preocupação é que, em um eventual acordo de paz, a Rússia exija a devolução dos valores bloqueados. Sem esse respaldo jurídico, a Bélgica bloqueou qualquer avanço no uso direto do capital.
Havia expectativa de que essas divergências fossem superadas em uma nova cúpula europeia prevista para dezembro. No entanto, a proposta apresentada por Trump alterou o cenário e reacendeu tensões, ao sugerir o que analistas classificam como um confisco de ativos russos mantidos em território europeu.
Proposta dos EUA e resposta europeia
Segundo a versão inicial do plano americano, cerca de 100 bilhões de dólares em ativos russos congelados na Europa seriam destinados a projetos liderados pelos Estados Unidos para reconstrução e investimentos na Ucrânia. A Europa, por sua vez, seria chamada a aportar valor equivalente — desta vez, com recursos próprios, provenientes diretamente dos contribuintes.
Além disso, mais de 200 bilhões de euros restantes seriam alocados em um mecanismo de investimento conjunto entre Estados Unidos e Rússia, com o objetivo declarado de desestimular um novo conflito. Para especialistas, a estrutura beneficiaria prioritariamente empresas americanas, o governo dos EUA e Moscou.
Em resposta, Alemanha, França e Reino Unido apresentaram uma contraproposta. O plano europeu prevê que os ativos russos permaneçam congelados até que a Rússia indenize a Ucrânia pelos danos causados pela guerra. A ideia em discussão há cerca de um ano na União Europeia envolve o uso desses recursos como garantia para um título de dívida de longo prazo, emitido pela Comissão Europeia, destinado a financiar um empréstimo de aproximadamente 140 bilhões de euros a Kiev. A Ucrânia só seria obrigada a quitar o valor caso receba compensações de guerra da Rússia.
“Essa é uma forma de avançar sem recorrer ao confisco direto”, explica Philip Bednarczyk, diretor do escritório do German Marshall Fund em Varsóvia.
Limites da atuação americana
Os Estados Unidos mantêm sob sua jurisdição cerca de 5 bilhões de dólares em ativos russos — uma fração do total bloqueado globalmente. Especialistas ressaltam que Washington não tem autoridade para decidir sobre recursos retidos em países europeus.
Para analistas do ECFR, é aceitável que esses ativos sejam usados para apoiar a estabilidade da Ucrânia, mas dificilmente a opinião pública europeia concordaria em vê-los gerar ganhos desproporcionais para investidores estrangeiros.
A resistência política ficou clara nas declarações de líderes do continente. O chanceler alemão, Friedrich Merz, classificou como “impensável” a transferência de ativos russos mantidos em Bruxelas para os Estados Unidos. Na mesma linha, o presidente do Conselho Europeu, António Costa, afirmou que decisões sobre sanções e congelamento de ativos exigem deliberação conjunta da União Europeia. Já o presidente francês, Emmanuel Macron, reforçou que apenas os europeus podem decidir o destino de recursos sob sua custódia.
Segundo Bednarczyk, a disposição europeia para agir de forma coordenada com os Estados Unidos existia durante o governo anterior em Washington. “Mas o cenário mudou”, avalia. “A atual administração demonstra menos preocupação com a posição europeia e, em muitas ocasiões, simplesmente a ignora.”



