Organizações temem perder acesso aos territórios palestinos após processo de registro que restringe linguagem em relatórios e comunicados públicos
Pressão por autocensura
Durante meses, uma agente humanitária que atuava em Jerusalém descreveu ter vivido uma “sensação de raiva” constante. Até o primeiro semestre de 2025, ela trabalhava em uma organização internacional com sede nos Estados Unidos, responsável por ações de defesa de direitos em Gaza e nos territórios palestinos ocupados.
Segundo relatou, publicar uma simples declaração se transformava em uma disputa interna. Termos como “ocupação”, “bloqueio” e “responsabilidade” eram considerados inaceitáveis pela direção, que exigia versões suavizadas dos comunicados. “Sentia que estava participando de um encobrimento. Essencialmente, me pediram para mentir”, afirmou à DW.
A investigação conduzida pelo veículo alemão incluiu análise de e-mails, diretrizes internas e mais de cem comunicados oficiais, além de entrevistas com 19 pessoas ligadas a ONGs internacionais. Os dados apontam para uma mudança consistente no discurso após a adoção, por Israel, de um novo processo de registro de organizações em março de 2025.
Impacto das novas exigências
O regulamento aprovado pelas autoridades israelenses no final de 2024 obriga entidades humanitárias a se registrarem novamente até setembro de 2025 para manter atividades em Gaza e na Cisjordânia. Entre as exigências, está a entrega de informações pessoais de funcionários palestinos — algo que, segundo as organizações, pode colocar trabalhadores em risco.
Além disso, o governo israelense pode negar licenças a instituições que apoiem ações judiciais contra militares israelenses em tribunais internacionais ou que tenham vínculos com pessoas favoráveis a boicotes a Israel nos últimos sete anos.
Para muitos, a medida teve efeito imediato. Um ex-agente afirmou que a nova política provocou um “efeito intimidador” em todo o setor.
Reações do setor humanitário
Em agosto de 2025, cem organizações internacionais condenaram formalmente as novas regras, acusando Israel de tentar silenciar a defesa de direitos e limitar a ajuda imparcial.
Entre as poucas vozes públicas, está a de Shaina Low, assessora de comunicação do Conselho Norueguês para Refugiados. Para ela, o processo “cria um precedente perigoso”.
Já o Ministério de Assuntos da Diáspora e Combate ao Antissemitismo de Israel, responsável pelo registro, afirmou em nota que “apoia atividades humanitárias genuínas, mas não permitirá que atores hostis operem sob o pretexto humanitário”.
Mudanças na comunicação
A investigação da DW mostra que a autocensura passou a ser regra em diversas instituições. Organizações tradicionais como a Ação Contra a Fome (ACF) e o Comitê Internacional de Resgate (IRC) reduziram o uso de termos relacionados a violações do direito internacional humanitário.
Em outubro de 2023, o IRC chegou a alertar que Gaza estava sob “cerco”. Após o novo processo de registro, a palavra desapareceu de seus comunicados. A ACF, que antes denunciava ataques desproporcionais contra civis como violações do direito internacional, também passou a usar linguagem mais genérica.
Questionada, a ACF afirmou que seu foco é “assegurar a continuidade das operações, garantir acesso às populações vulneráveis e manter os princípios humanitários”.
Restrições na ajuda
A entrega de assistência também foi alterada. Desde maio de 2025, a distribuição de suprimentos em Gaza passou a ser controlada pela Fundação Humanitária de Gaza (GHF), com sede nos Estados Unidos, em substituição a ONGs tradicionais. A GHF mantém apenas quatro pontos de entrega, o que obriga palestinos a longas caminhadas para obter alimentos.
Segundo a ONU, mais de 800 pessoas foram mortas nas proximidades desses pontos por forças israelenses ou agentes de segurança contratados. A GHF, em resposta, classificou as acusações como “falsas e exageradas”.

Centenas de palestinos foram mortos ou feridos enquanto buscavam ajuda humanitária em Gaza – Foto: Khames Alrefi/Anadolu/picture alliance
Entre silêncio e denúncia
Para trabalhadores humanitários, a escolha agora é amarga: falar abertamente e arriscar a expulsão dos territórios ou adotar um discurso mais brando para tentar manter a presença no local.
“Você tem duas opções, e ambas são erradas”, disse uma das entrevistadas. Ela teme que, no futuro, o silêncio seja visto como cumplicidade. “Se não podemos relatar como é a sobrevivência em Gaza, estamos pintando uma realidade distorcida.”
( Com DW )