Digitalização agilizou processos, mas escancara exclusão tecnológica e reforça necessidade de atendimento híbrido
A digitalização dos serviços da Previdência Social, acelerada durante a pandemia de covid-19, expôs um novo desafio para milhões de brasileiros: a exclusão digital de idosos. Embora ferramentas como o aplicativo Meu INSS e o telefone 135 tenham facilitado processos burocráticos, o modelo digital ainda se mostra inacessível para uma parcela significativa da população mais velha.
A aposentada Elzanira Machado, de 62 anos, é uma das muitas pessoas que enfrentam dificuldades com as plataformas digitais. “Olha, eu já tentei sim entrar no aplicativo, mas às vezes, parece que tem muito acesso e não entra de jeito nenhum, né? Eu tenho que ter uma pessoa do lado, né? Para sempre estar me falando o que que tem que fazer”, relatou.
Tecnologia imposta sem preparo
Com mais de 33 milhões de pessoas idosas no Brasil — das quais cerca de 23,5 milhões recebem aposentadoria, segundo o IBGE —, muitos cresceram em contextos sem internet ou familiaridade com dispositivos digitais. A obrigatoriedade do uso de plataformas online para agendamento de serviços do INSS acabou impondo barreiras tecnológicas difíceis de transpor.
Segundo a professora Adriane Nieglinski, da Universidade do Contestado, mesmo as tarefas mais simples representam um desafio para quem não teve acesso à tecnologia durante a vida. “Pra alguém que nunca teve acesso a um conteúdo digital, o acessar começa no simples ligar o sistema, ligar um equipamento. Então, a dificuldade é muito maior”, afirmou.
Adriane e a advogada Nicoli Farias publicaram em 2024 um artigo científico sobre as limitações impostas à população idosa com a digitalização da Previdência. A pesquisa foi motivada por experiências diretas de Nicoli durante estágio em uma agência do INSS em 2019, quando o atendimento presencial ainda era realizado sem necessidade de agendamento virtual.
Medo de errar e dependência familiar
A resistência ao uso de tecnologias não se dá apenas por desconhecimento técnico. O receio de cometer erros, digitar senhas incorretas ou cair em golpes virtuais reforça a insegurança dos usuários. “Eles têm receio de clicar, de fazer alguma coisa errada. Eu percebia muito esse medo deles”, contou Nicoli.
Elzanira reconhece essa dificuldade: “Eu acho superdifícil. Às vezes, tem tanta senha, senha pra isso, senha para aquilo. Tem tantas especificações que a gente se perde. A gente dessa idade, ou está informado, bem informado, ou então é preferível que nem mexa.”
Conta gov.br e segurança digital
Desde 2020, o acesso ao Meu INSS é feito por meio da conta gov.br, login unificado do governo federal. Com mais de 167 milhões de CPFs cadastrados, a plataforma oferece acesso a cerca de 4,5 mil serviços públicos. A secretária adjunta de Governo Digital, Luanna Roncaratti, afirma que o sistema é robusto e segue padrões de segurança da informação.
“Essas pessoas podem acessar e requisitar mais de 4,5 mil serviços do governo federal. É uma plataforma segura, robusta, e a gente tem todo um cuidado de usar as melhores práticas de segurança da informação e proteção de dados”, explicou.
Notificações por app e exclusão no acesso
A exigência do uso do aplicativo ganhou relevância em abril, quando uma investigação da Polícia Federal e da Controladoria-Geral da União revelou fraudes em descontos associativos em benefícios do INSS, com prejuízo estimado em R$ 6,3 bilhões entre 2019 e 2024.
Para informar os atingidos, o INSS enviou notificações exclusivamente pelo Meu INSS a cerca de 9 milhões de segurados. Em duas semanas, pouco mais de 2,3 milhões pediram ressarcimento — o que indica que ao menos 6 milhões podem não ter conseguido acessar o aviso ou não entenderam do que se tratava.
A advogada Nicoli Farias alerta que a oferta digital não garante, por si só, acesso. “O atendimento presencial deixava eles muito mais seguros, facilitava essa questão de poder se inserir, de ter acesso à informação e até uma própria autonomia”, afirmou.
Modelo híbrido: uma necessidade, não uma opção
Especialistas defendem que os serviços digitais devem ser complementares, não excludentes. “A pessoa idosa que não tem no cotidiano o uso dos recursos digitais anseia por falar, pedir informação, ver no papel”, apontou Adriane Nieglinski. “Mesmo pelo telefone, é um atendimento digital. Ou você faz pela internet. E, pra quem não tem internet, como é que faz?”
Segundo Luanna Roncaratti, os normativos do Executivo determinam que os atendimentos presenciais devem ser mantidos sempre que necessário. Desde 2024, o governo testa o projeto-piloto Balcão gov.br, que oferece suporte físico em locais como os postos Na Hora (DF) e UAI (MG). Atualmente, há 50 pontos em operação, com meta de chegar a mil até o fim de 2025.
“Quem precisa recuperar senha ou quer um atendimento presencial pode buscar esses postos”, afirmou.
Correios como ponto de apoio
Desde esta sexta-feira (30), aposentados e pensionistas que tiveram descontos indevidos poderão procurar atendimento presencial em uma das 5 mil agências dos Correios. O serviço é gratuito, com prioridade no atendimento, e permite contestar cobranças diretamente no local.
A recomendação é que os beneficiários fiquem atentos: nem o INSS nem os Correios estão autorizados a realizar visitas domiciliares, tampouco entrar em contato por aplicativos, SMS, e-mails ou ligações. “É muito complicado. Mas, também, se for na facilidade, né? É tanta fraude que aí já viu, né?”, alerta Elzanira.
Série especial sobre inclusão digital
O tema será abordado no episódio de estreia da terceira temporada da coluna Ajudante Digital, veiculada no programa Tarde Nacional, da Rádio Nacional. A nova temporada estreia em 2 de junho e vai tratar das principais dúvidas enfrentadas por idosos no uso de serviços digitais públicos.