Fotógrafo mineiro transformou a imagem documental em instrumento de denúncia e preservação do planeta
O mundo perdeu nesta sexta-feira (23) um dos maiores nomes da fotografia contemporânea. Morreu em Paris, aos 81 anos, o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado. A causa da morte não foi divulgada oficialmente, mas Salgado sofria há anos das consequências de uma malária adquirida nos anos 1990 durante uma expedição. Natural de Aimorés (MG), ele construiu uma das mais relevantes trajetórias da fotografia documental e humanista do século XX e XXI.
Em fevereiro do ano passado, Salgado afirmou em entrevista ao Instituto Moreira Salles: “Fotógrafo não se aposenta”. A frase resume a essência de sua vida: um trabalho incansável de registrar o mundo com empatia e profundidade. Ele deveria comparecer nesta terça-feira (24) à inauguração de vitrais criados por seu filho Rodrigo para uma igreja em Reims, na França, mas cancelou compromissos por problemas de saúde.
Da economia à fotografia: o início em Paris
Sebastião Salgado vivia na capital francesa desde o final dos anos 1960. Formado em Economia, atuou na Organização Internacional do Café, o que o levou a viagens constantes pela África. Nessas jornadas, passou a fotografar com a câmera da esposa, Lélia Wanick. Pouco tempo depois, abandonou a carreira econômica para se dedicar integralmente à fotografia, ingressando nas agências Sygma, Gamma e, posteriormente, na prestigiada Magnum, onde se consagrou.
Foi pela Magnum que registrou um dos episódios mais marcantes da política norte-americana: o atentado contra o presidente Ronald Reagan, em 1981. A imagem, captada por Salgado, correu o mundo e consolidou sua reputação como fotojornalista.
Primeiros grandes projetos: América Latina e África
O primeiro projeto autoral de grande porte foi Outras Américas (1986), fruto de sete anos de viagens pela América Latina, incluindo o Nordeste brasileiro, além de países como Chile, Bolívia, Peru, Equador, Guatemala e México. O ensaio retrata, nas palavras do jornalista Alan Riding, “o mundo dos destituídos”.
Na sequência, Salgado voltou-se para a África com o projeto Sahel: o homem em pânico, uma série impactante sobre a seca no norte do continente. As imagens geraram forte repercussão ao expor uma tragédia silenciosa e colocaram o brasileiro entre os grandes nomes da fotografia mundial.
“Trabalhadores” e o fim de uma era industrial
Entre 1986 e 1992, Salgado desenvolveu o projeto Trabalhadores, um ensaio dedicado ao labor manual em diversos continentes. As fotos de Serra Pelada, no Pará, tornaram-se emblemáticas. “Estava registrando o fim da primeira grande revolução industrial”, afirmou em entrevista de 2022. “As máquinas estavam substituindo o homem, e eu decidi documentar esse momento histórico.”
Êxodos e Gênesis: o deslocamento humano e o planeta em foco
No final dos anos 1990, Salgado lançou Êxodos, um retrato dos deslocamentos provocados por guerras, fome e desastres ambientais. A obra seria sucedida por Gênesis, um dos seus projetos mais ambiciosos, no qual percorreu os locais mais remotos da Terra para mostrar a beleza ainda preservada do planeta. Em entrevista ao Correio em 2014, afirmou:
“Gênesis mudou a minha percepção. Descobri que minha espécie é tão importante quanto todas as outras. São milhares de espécies que compõem essa unidade que é o nosso universo.”
Amazônia e Instituto Terra: da imagem à ação
O último grande projeto fotográfico de Salgado foi dedicado à Amazônia. Realizado entre 2013 e 2019, ele percorreu a floresta brasileira, convivendo com povos indígenas e documentando as ameaças à biodiversidade. “Vi um avanço imenso da destruição vindo da periferia para o centro”, relatou em entrevista.
O compromisso com o meio ambiente não se restringiu à fotografia. Em 1998, Salgado e Lélia fundaram o Instituto Terra, que promove a recuperação da Mata Atlântica na região do Rio Doce. A restauração da antiga fazenda da família devolveu a vida à floresta e inspirou iniciativas sustentáveis no país.
Referência ética e inspiração internacional
Sebastião Salgado não foi apenas um mestre das imagens, mas também uma referência ética na fotografia. A maneira como conduzia seus projetos, com profundo respeito pelos retratados, influenciou gerações.
Professor de fotografia no Ceub, Lourenço Cardoso destacou sua capacidade de “extrair beleza das formas e das situações mais trágicas da humanidade”. Para o fotógrafo André Vilaron, Salgado encarnava a união entre imagem, convicção e ética: “Acreditava que, com sua força, a imagem podia transformar o mundo.”
Um olhar humano sobre o mundo
A fotógrafa Zuleika de Souza ressaltou a empatia presente na obra do mineiro: “Ele se colocava no lugar das pessoas que fotografava. Chegava a tomar pílulas para não se alimentar em lugares onde as pessoas passavam fome.” Já Eraldo Peres, fundador da Photo Agência, enfatizou o impacto global de sua obra: “Documentou temas que perpassam todos os tempos, sempre com generosidade e humildade.”
Legado imortal
Sebastião Salgado deixa um acervo monumental, reconhecido pela força estética e pelo compromisso com a justiça social e ambiental. Seu trabalho, entrelaçado com sua visão de mundo, permanece como testemunho de um tempo marcado por transformações e urgências. “Não tenho mais a preocupação se o ser humano vai sobreviver ou não. O planeta vai se refazer das mazelas que criamos”, disse certa vez.
A morte do fotógrafo representa uma perda irreparável, mas seu legado permanece como bússola ética e estética para a fotografia e para o mundo.