ONGs denunciam que mais de 300 médicos e enfermeiros palestinos foram detidos sem acusação formal
Durante grande parte do atual conflito entre Israel e o Hamas, o médico palestino Eyas al-Bursh, de 30 anos, atuou voluntariamente no Hospital Al Shifa, o principal centro de saúde da cidade de Gaza. No entanto, em março de 2024, ele e outros profissionais foram detidos durante uma grande operação militar na unidade hospitalar.
Al-Bursh foi levado, vendado e algemado, ao centro de detenção militar de Sde Teiman, onde relatos anteriores da agência de notícias Associated Press e de organizações de direitos humanos já haviam denunciado casos de abuso. “A viagem foi marcada por espancamentos constantes, humilhação e insultos”, relatou o médico por mensagem. Segundo ele, as condições de detenção eram desumanas: “Nos mantinham algemados e vendados o tempo inteiro. Das 6h às 23h, não nos permitiam dormir, forçando-nos a permanecer sentados por longas horas. Era insuportável”. Após passar quase um ano detido, foi liberado em fevereiro de 2025, sem que qualquer acusação formal fosse apresentada.
O testemunho de Al-Bursh integra um relatório da organização Médicos pelos Direitos Humanos – Israel (PHRI, na sigla em inglês), que denuncia a prisão arbitrária de profissionais de saúde da Faixa de Gaza. Segundo o documento, médicos e enfermeiros são submetidos a abusos sistemáticos, incluindo violência física e interrogatórios sem acesso a advogados.
Detenções em massa após o ataque de 7 de outubro
Os ataques do Hamas a Israel em 7 de outubro de 2023 deixaram quase 1.200 mortos e resultaram no sequestro de cerca de 250 pessoas. Como resposta, Israel lançou uma ofensiva militar sobre Gaza, que, segundo o Ministério da Saúde local, já resultou em mais de 48 mil mortes até o estabelecimento de um frágil cessar-fogo, em janeiro de 2025.
No contexto da ofensiva, milhares de palestinos foram detidos com base na chamada “lei dos combatentes ilegais”, que concede ao Exército israelense amplos poderes para prender qualquer pessoa suspeita de envolvimento em atividades hostis ou consideradas uma ameaça à segurança do país. Essa legislação permite detenções indefinidas sem acusação formal, sem acesso a advogados e com possibilidade de sucessivos adiamentos de audiências judiciais.
“A prisão arbitrária, os abusos e a privação de comida contra funcionários da saúde de Gaza são um ultraje moral e legal”, afirmou Naji Abbas, diretor do Departamento de Direitos de Prisioneiros da PHRI. O relatório da entidade, elaborado a partir dos relatos de 24 profissionais de saúde que passaram meses detidos antes de serem libertados, reforça a gravidade das violações cometidas. “Profissionais da medicina jamais deveriam ser alvos de detenções ou torturas por exercerem sua função de salvar vidas”, acrescentou Abbas.
A maioria dos médicos mencionados no relatório foi presa sob essa justificativa. A PHRI relata que muitos foram “retirados à força, despidos, humilhados e submetidos a tratamento brutal”. Apesar disso, “as autoridades israelenses ainda não apresentaram provas que os vinculem a ameaças concretas à segurança”.
Relatos de maus-tratos em prisões israelenses
Outro caso documentado é o do cirurgião Khaled Alser, detido em março de 2024 no Hospital Nasser, na cidade de Khan Younis, no sul de Gaza, durante uma operação militar. Ele foi inicialmente levado a um prédio vazio, onde foi submetido a longos interrogatórios.
“Fui questionado repetidamente sobre o hospital, meu trabalho, os tipos de cirurgia realizados, onde estava em 7 de outubro, se havia tratado reféns e se tinha conhecimento de túneis ou atividades do Hamas dentro da unidade”, relatou. Posteriormente, foi transferido, algemado e acorrentado, para um centro de detenção em Israel.
“Eles nos jogaram em um jipe militar e nos mantiveram circulando por mais de duas horas. Durante esse tempo, fomos espancados e humilhados. Os soldados sentavam sobre nós, davam chutes com as botas e nos golpeavam com as coronhas dos fuzis. Quando pedimos para que parassem, continuaram.” Após sete meses detido, Alser foi libertado em outubro de 2024, também sem acusação formal.
Segundo a PHRI, a maioria dos profissionais de saúde interrogados foi questionada sobre reféns, instalações hospitalares e atividades do Hamas. Além disso, há relatos de violência física, psicológica e sexual, bem como negligência médica nas prisões. Alguns detentos teriam sido forçados a auxiliar os militares israelenses em buscas dentro dos hospitais de Gaza.
Israel nega acusações
Em uma reportagem investigativa publicada em 25 de fevereiro de 2025, o jornal britânico The Guardian divulgou informações semelhantes, corroboradas por outras organizações de direitos humanos e pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Consultadas pela DW, as Forças de Defesa de Israel (IDF) rejeitaram as alegações, afirmando que, desde os ataques de 7 de outubro, o Exército tem operado “dentro dos limites do direito internacional” para restaurar a segurança da população israelense e resgatar reféns.
“Durante as operações na Faixa de Gaza, suspeitos de atividades terroristas foram presos e levados a Israel para detenção e interrogatório. Aqueles sem envolvimento foram libertados assim que possível”, declararam as IDF.
Cobrança por responsabilização internacional
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), Israel já deteve pelo menos 297 profissionais da área médica desde outubro de 2023, incluindo médicos, enfermeiros e outros trabalhadores da saúde. O grupo palestino Healthcare Workers Watch estima que esse número seja ainda maior, chegando a 338. Até a publicação do relatório da PHRI, mais de 180 profissionais permaneciam encarcerados, sem previsão de soltura.
A guerra intensificou a crise no setor de saúde da Faixa de Gaza, já fragilizado por anos de bloqueio imposto por Israel e Egito. De acordo com a ONU, mais de mil funcionários da área médica morreram no conflito, hospitais foram destruídos e o sistema de saúde entrou em colapso.
Pelo direito humanitário internacional, hospitais têm status de proteção especial, salvo em casos em que sejam usados para fins militares. O governo israelense alega que o Hamas e outros grupos militantes utilizam as unidades de saúde como bases operacionais, o que justificaria ações militares nesses locais.
Há relatos de que alguns médicos palestinos morreram sob custódia militar israelense. Entre eles, um diretor do departamento de ortopedia do Hospital Al Shifa, cujo corpo não foi devolvido à família. Segundo ex-detentos, ele teria sido torturado e violentado antes de falecer.
Outros profissionais continuam presos sem acusações, como o pediatra Husam Abu Safiya, diretor do Hospital Kamal Adwan, capturado em dezembro de 2024, quando as forças israelenses fecharam uma das últimas unidades médicas ainda operacionais no norte de Gaza.
“Israel deve libertar imediatamente todos os profissionais de saúde detidos, e a comunidade internacional precisa exigir a devida responsabilização”, declarou Abbas, da PHRI, ao final do relatório.
( Com DW )