Por Nilson Jaime*, D.Sc.
Em 2019 entrei na “Livro Cultura”, um misto de sebo e livraria na Praça Joaquim Lúcio, em Campinas, para garimpar preciosidades livrescas a preço baixo – como sempre faço desde 1977 quando, aos 15 anos, mudei-me de Palmeiras de Goiás para Goiânia a fim de continuar meus estudos.
Abri mão de três anos de contrato recém assinado como estagiário “azulzinho” no Banco do Brasil, em Palmeiras, e matriculei-me no Colégio Pedro Gomes, bairro de Campinas, a “Campininha das flores”.
Morava na “república da Dona Joaquina”, Rua R-2, Setor Oeste, logradouro ao fundo da antiga sede da CELG. Dona Joaquina, viúva vinda de Piracanjuba, construiu uns 20 quartinhos de aluguel no quintal de sua residência.
A partir do pioneiro, José Orlando Forzani, os estudantes Palmeirenses se alojavam ali, ao final da década de 1970. Além de mim, vieram nos anos posteriores, os hoje advogado Luiz Antônio Perillo, seu irmão, professor de cursinho e médico veterinário Luiz Augusto Perillo, Fernando e Afrânio Machado Júnior, dentre outros. Essa a turma de Palmeiras. Mas havia a de Piracanjuba, Pires do Rio, Goiatuba e Inhumas. E a “turma do Norte de Goiás”, e até do Maranhão.
Em maio de 1977 (as aulas só começariam nesse mês, por causa de uma reforma no prédio do tradicional “Pedrão”) meu genitor acompanhou-me na viagem definitiva para fora fora da casa paterna. Seria também a última oportunidade em que visitaria a modesta residência de 16 m2, pois quando dar-se-ia a segunda, sete anos depois, na minha formatura em Agronomia pela UFG, ele encontrava-se internado no Hospital das Forças Armadas (HFA) em Brasilia, e não compareceu à cerimônia.
Antes de deixar-me na “república”, levou-me ao então Mercado São Judas Tadeu, na confluência das Avenidas Anhanguera e 24 de Outubro, a fim de comprar umas frutas. Foi ali que me deparei pela primeira vez com um sebo de livros usados. Era uma banca simples, com centenas de títulos “mais em conta”, embora de qualidade duvidosa.
Assim que fiquei sozinho em minha nova morada, retornei incontinenti ao sebo, sentindo-me livre, absoluto e independente. Estava longe de casa, à minha própria sorte. A leitura e os estudos seriam meu passaporte para uma vida melhor, imaginava.
Dessa forma, comprei meus três primeiros livros em sebos: um de ficção científica (“A abóboda energética” , de Perry Rhodan), um livro pequeno de filosofia (“A morte do Homem Eterno”, não me recordo o autor) e uma apostila denominada Química Geral, escrita por professores do Colégio em que eu iria estudar.
A partir daí, sempre que podia, frequentava os poucos sebos existentes em Goiânia, desfalcando os parcos recursos da semanada: o sebo “da Rose”, na Rua Santa Luzia, e o da Rua 210, na Praça A, em Campinas; o da Rua 55 e o da Avenida Goiás com Paranaíba, no Centro. Vi nascer todos os sebos de Goiânia, incluindo os da Rua 4 e os da Avenida Goiás. Na maioria da vezes, só olhava. Quando tinha um dinheirinho, comprava o que dava para comprar.
Ia sempre à Livraria Cultura Goiana, na Rua 7, Centro, e à Barraca do Escritor Goiano, aos domingos, na Feira Hippie. Mas os preços ali não eram para meu bolso de estudante. Olhava, mexia, observava os escritores conversando e ia embora sem levar nada. Assim, a saída era recorrer aos preços módicos dos sebos, e às “duplicatas” que eu ganhava na Biblioteca da UFG.
Presentemente, quando viajo, a visita a sebos são desejáveis e obrigatórias. Já paguei excesso de bagagem por uma coleção de ciências naturais adquirida no “El Tunel”, de Buenos Aires; briguei no preço com o livreiro na disputa para comprar um raro exemplar oitocentista na Linardi & Risso, em Montevideo; e adquiri preciosidades na Shakespeare & Company, ou na Gibert Jeune, em Paris; no Berinjela, no Rio; ou no Sebo do Messias, em São Paulo, dentre dezenas de outros. Adquiro livros na Estante Virtual desde o início da empresa, hoje pertencente à Livraria Cultura.
Busco títulos de meu interesse, preferencialmente de baixo custo. Não resisto a uma edição autografada, primeira edições de clássicos, e ítens com anotações que os tornem colecionáveis, ou até raros.
Foi com essa curiosidade inata, acentuada por um certo “vício bibliófilo” que entrei na Livro Cultura, para “garimpar” novidades velhas.
Deparei-me com um exemplar surrado de “Dos becos de Goiás e estórias mais” , de Cora Coralina, editado originalmente pela UFG, em 1977.
O livro, uma reimpressão com capa manchada da famosa obra de poemas da escritora vilaboense, chamou minha atenção pelas cuidadosas anotações em seu interior.
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Uma letrinha miúda e débil, trêmula, como as de um ancião. As anotações pareciam uma correção ao texto. Apressei-me a perguntar o preço, não sem antes negacear, depreciando a deplorável condição do exemplar.
Meu faro bibliófilo pressentia que aquela letrinha guardava mais que banal anotação.
Pedi à livreira um exemplar da obra em edição atualizada. Comparei as duas e constatei que se tratava mesmo de uma correção.
Adquiri o livro e me pus a descolar a página de rosto colada inadvertidamente à capa, para ver se havia dedicatória ou alguma anotação que denunciasse a propriedade do livro. Encontrei apenas uma errata.
Busquei na internet e não tive mais dúvidas. As anotações foram correções feitas pela própria Cora Coralina.
Assim, mantenho em meu acervo um exemplar de “Dos becos de Goiás…” , corrigido e anotado com a letra da famosa autora Goiana.