Para não começar respondendo “de dentro”, já que estamos imersos na nossa própria realidade, nada melhor que recorrer às opiniões de estrangeiros que conhecem ou vivenciam o Brasil. Em entrevistas recentes às amarelas da Veja, um italiano e uma francesa, ambos entusiastas do eterno País do Futuro, apresentaram respostas inteiramente contrárias entre si.
O italiano é o sociólogo Domenico de Masi, autor de inúmeros estudos sobre o que chama de Sociedade Pós-Industrial. Recentemente lançou um livro para alardear que o Brasil, apesar da corrupção e da incompetência dos gestores públicos, “pode ser um exemplo para o mundo”. No que se refere à tolerância étnica sempre louvada no temperamento do brasileiro, o sociólogo tem uma resposta na ponta da língua.
“O Brasil”, diz ele, “nunca se propôs como campeão da democracia racial, embora o casamento entre brancos, índios e negros tenha consentimento desde sempre, o tratamento dos negros pelos brancos tenha sido sempre melhor do que o praticado nos Estados Unidos, e dezenas de grupos étnicos vivam juntos de forma mais pacífica e solidária que nos EUA”.
Já a ex-consulesa da França, Alexandra Loras, jornalista, professora e negra, não hesita em afirmar, com todas as letras, que “o Brasil é o país mais racista do mundo”. Ela também acredita que temos tudo para nos tornarmos uma superpotência. Quando o assunto é igualdade étnica, porém, deixa de lado o otimismo e pinta um quadro de decepção.
“O Brasil”, diz ela, “é o mais racista porque tem a segunda maior população negra do mundo e isso não é refletido na sociedade. Nos EUA (…) eles tiveram um presidente negro e contam com muitos negros na mídia, no show business, no Congresso, médicos, advogados, executivos. Morei quase quatro anos nos EUA (…) e nunca me senti discriminada lá. Aqui eu me sinto todos os dias, basta eu andar umas quadras e ir ao shopping”.
Segundo o seu próprio relato, Loras nunca ouviu ofensas diretas ou desqualificativos sobre a sua condição de mulher negra, mas já foi barrada num hotel cinco estrelas de Salvador, sempre tem as bagagens revistadas nos aeroportos e frequentemente é confundida com a babá do filho, que possui a pele clara.
Em quem acreditar? No italiano ou na francesa? Qual dos dois possui o melhor diagnóstico sobre o assunto?
Ainda que manifestem opiniões opostas, ambos utilizam o mesmo método de argumentação ao comparar o Brasil com os Estados Unidos. A comparação é inevitável por uma série de coincidências históricas, mas tenho dúvidas se ela funciona na avaliação de um tema espinhoso como o racismo.
Enquanto a abolição nos Estados Unidos se deu através de uma guerra, no Brasil ela não passou de um espetáculo demagógico, uma festança de oba-obas que resultou numa emancipação meia boca, sem programas de inclusão para os ex-escravos, sem reforma agrária (por mínima que fosse) e sem a criação de um projeto educacional capaz de atender a todos.
Essa cultura do drible diz muito sobre o nosso caráter, além de seduzir amantes do Brasil como Domenico de Masi.
Não por acaso, os melhores intérpretes de Gilberto Freyre sugerem que o mito da democracia racial só funciona enquanto um pacto de silêncio for respeitado por brancos e negros. Fique na Casa Grande quem finge que trata bem, fique na Senzala quem finge que é bem tratado, todos se encontram e se abraçam no terreiro, os negros decoram o Pai-nosso e os brancos aprendem a dançar o Lundu, mas depois é cada um na sua e ponto final.
Sempre que alguém da Senzala passa para a Casa Grande — ou vice-versa —, o berreiro “dos que tratam bem” vai começar porque há o entendimento de que o pacto foi quebrado.
É o que podemos ver no caso de Monalysa Alcântara, a nova Miss Brasil. Como ocorreu com Alexandra Loras, ela não foi “acusada” de ser negra, não diretamente — o que ocorreu, nesse sentido, foram críticas ao concurso de beleza, que teria se deixado contaminar pela lógica das cotas. O comentário mais compartilhado dizia que Monalysa não devia receber a faixa porque teria “cara de empregadinha”. Em outras palavras, ela até teria um lugarzinho na Casa Grande, desde que figurasse como serviçal, jamais como a rainha do lar.
A única conclusão a que se pode chegar é que somos racistas — claro que sim —, ainda que mais enrustidos, sutis, falsos, sub-reptícios, sarcásticos e enviesados. As comparações com os Estados Unidos sempre vão pesar a nosso favor. Dificilmente assistiremos aqui a passeatas de supremacistas brancos, mas a desconfiança e a vigilância sobre os negros, especialmente os mais pobres, continua sendo uma constante em nosso país.
O nosso racismo é “melhor” — ou menos pior — que o dos gringos, mas não se pode negar que também é, infelizmente, racismo.
Por Maicon Tenfen/Veja
Henrique