Após 30 anos, maioria das áreas que tiveram alto índice de radiação do césio-137 está ocupada
Com dimensão mundial, o drama provocado pelo acidente com o césio-137 foi vivido de forma ainda mais intensa em sete pontos de Goiânia que foram evacuados na época por causa do alto índice de radiação. Trinta anos depois, a maioria deles está ocupada. Grande parte dos moradores ainda vive na vizinhança e se recorda da tragédia quase que diariamente. Alguns ainda temem ser contaminados, mas especialistas garantem que não há risco.
O acidente começou no dia 13 de setembro de 1987, quando os catadores de recicláveis Wagner Mota Pereira e Roberto Santos encontraram o aparelho de radioterapia abandonado na sede do Instituto Goiano de Radioterapia (IGR), que estava desativado. Eles levaram a peça de chumbo e metal, para a casa do Roberto, localizada na Rua 57, no Centro de Goiânia, onde começaram a desmontá-la.
No dia 18 daquele mês, eles venderam o equipamento a Devair Ferreira, que tinha um ferro velho na Rua 26-A, no Setor Aeroporto, e o desmanchou totalmente com golpes de marreta. Seis dias depois, Ivo Ferreira, irmão de Devair, foi visitá-lo e viu a pedra que brilhava durante a noite. Ele levou fragmentos para casa dele, localizada na Rua 6, no Setor Norte Ferroviário.
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Equipamento com césio-137 foi aberto em casa na Rua 57, no Centro de Goiânia (Foto: (Divulgação/ Cnen) (Paula Resende/G1))
Durante esse período, Devair também cedeu fragmentos a Ernesto Fabiano, que os levou para sua casa, na Rua 17-A, no Setor Aeroporto. O material ficou retido na fossa e, por isso, nos estudos, o local ficou conhecido como “Casa da fossa”. Por sua vez, ele deu parte do césio ao irmão, Edson Fabiano, que levou o “presente” para a residência dele, localizada na Rua 15-A, no mesmo bairro.
Devair vendeu no dia 26 uma carga de recicláveis a Joaquim Borges, dono de outro depósito, na Rua P-19, no Setor dos Funcionários. Na ocasião, a mulher dele, Maria Gabriela jogou o aparelho em meio ao carregamento.
Ao notar que todos que tiveram contato com o material estavam se sentindo mal, no dia 28, a esposa de Devair foi, juntamente com o funcionário Geraldo Guilherme, ao ferro velho da P-19 para pegar a peça de volta e levá-la para a sede da Vigilância Sanitária Estadual, na Rua 16-A, no Setor Aeroporto, onde se descobriu do que se tratava e atualmente sedia o Centro de Atendimento aos Radiocidentados (Cara).
Foi constatada a contaminação pelo césio-137 em 249 pessoas. Neste grupo, 129 tinham rastros da substância interna e externa ao organismo. A Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) calculou ainda que 49 pessoas foram hospitalizadas, sendo que 20 necessitaram de cuidados médicos intensivos.
Quatro pessoas morreram no período de quatro semanas. A primeira delas foi a menina Leide das Neves Ferreira, de 6 anos, que morreu em 23 de outubro de 1987.
Lembranças
O comerciante Jair Onofre do Prado, 65 anos, conhecido como Jajá, tinha uma casa lotérica nas proximidades do local onde o aparelho começou a ser desmontado, na Rua 57, e morava em frente ao ferro-velho onde a peça foi aberta totalmente, na Rua 26-A.
Ele conta que teve de deixar o apartamento em que morava por alguns meses e nunca mais quis voltar. Quanto ao trabalho, ele tem há quase 20 anos um negócio no Mercado da 74, onde a Rua 57 termina. Ele se recorda que, na época, a região virou um “deserto”.
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Jair do Prado se emociona ao relembrar do acidente com o césio-137 (Foto: Paula Resende/ G1)
“O pessoal evitava passar, tinha cisma né. Virou um deserto. Muitos comerciantes enfrentaram um perrengue danado. Como não queria voltar para meu apartamento, se valia R$ 500 mil, vendi por R$ 100 mil” relata.
Jajá conta que tinha dois filhos, de 2 e 3 anos, e temeu pela saúde da família. Ele ainda se emociona ao relembrar do desastre e do alívio que sentiu ao passar pelo detector e constatar que ninguém da sua família tinha sido contaminado.
“Parece que foi ontem, quem viveu não esquece. A gente sofreu discriminação. Se falasse que morava na zona do césio, era terrível, a pessoa se afastava”, conta Jajá.
Prado tem um bar no Mercado da 74, localizado no fim da Rua 57 (Foto: Paula Resende/ G1)
Contaminação
Chefe da divisão de rejeitos da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) e físico que identificou o acidente, Walter Mendes Ferreira, 64 anos, explica que o nível de radiação era tão alto em alguns pontos que não havia instrumentos na capital que pudessem mensurá-lo.
“As taxas eram extremamente elevadas, inadequadas para o convívio de qualquer ser humano, por isso foi evacuada toda a região”, avalia Ferreira.
De acordo com o físico, o tipo do solo da região é arenoargiloso e tem a característica de reter sal. Para ele, isto colaborou para que o césio não se espalhasse e ficasse em uma camada de 50 a 70 centímetros de profundidade.
“Após 50, 70 centímetros, não se encontrava nenhuma partícula de césio. Então, foi retirada a terra nesta faixa e, para que tivesse segurança, colocou concreto”, relatou.
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Rua 57 foi fechada na época do acidente (Foto: (Divulgação/ Cnem) (Paula Resende/ G1))
Todos os materiais contaminados foram levados para o Centro Regional de Ciências Nucleares do Centro Oeste (CRCN-CO). Ao todo, são 6 mil toneladas de restos infectados.
O especialista garante que atualmente não há risco para a população.
“Os valores hoje apresentados nos locais descontaminados são extremamente baixos, iguais à radiação natural, dos próprios minerais que compõem a Terra”, explicou Ferreira.
Receio
Apesar da afirmação dos especialistas, muitos moradores da capital não são convencidos pelos laudos técnicos. Entre eles está a aposentada Lourdes, de 65 anos, que mora em frente ao ferro-velho da Rua P. 19, no Setor dos Funcionários, onde os catadores que encontraram a peça tentaram vender o chumbo e metal do cilindro que abrigava a fonte.
Lourdes afirma que ainda não tem coragem de comer o fruto ou verduras plantadas nas proximidades do estabelecimento, onde atualmente há um galpão disponível para aluguel. “Eu sou cismada. Nasceu um pé de alfavaca e eu não tenho coragem de pegar. Eu vou até cortar para evitar que outras pessoas peguem”, afirmou.
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Mutios moradores não têm coragem de consumir plantas que crescem em locais onde houve contaminação (Foto: Paula Resende/ G1)
De acordo com Ferreira, assim como o solo, a vegetação não está contaminada. O físico conta que as equipes do Cnen chegaram a comer frutas colhidas nos imóveis para provar que não há riscos. Ele ressalta que os técnicos tiveram de trabalhar com o psicológico das pessoas para explicar sobre o que aconteceu e desmistificar a situação.
“O técnico tem que ter uma psicologia muito grande, é muito delicado porque está tratando do psicológico, as pessoas estavam em estado traumático e se acrescentassem ingredientes, elas iam desenvolver problemas psicológicos seríssimos”, relatou.
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Lotes na Rua 26-A seguem inabitados 30 anos depois do acidente com o césio-137 (Foto: Paula Resende/ G1)
Outro receio dos moradores é em relação a rachaduras no concreto das áreas onde houve contaminação. Ferreira ressalta que o desgaste do cimento não se trata de um problema e que todas as áreas podem ser construídas.
“A gente tem um documento com a prefeitura para que, quando for feita uma solicitação de construção, a gente faça o acompanhamento para comprovar que não tem nada. Em um dos pontos, por exemplo, se construiu um prédio há uns quatro anos, se fez uma escavação muito mais profunda e não encontramos nada”, explica.
Ferreira afirma que Goiânia foi um laboratório em questão de acidentes radiológicos e se tornou referência. Ele possui a sensação de “dever cumprido” em relação ao maior acidente radiológico em área urbana do mundo.
“Sabia o que estava fazendo. Meu pressentimento era que tinha que retirar as pessoas, isolar as áreas e convencer autoridades. Foi um trabalho difícil, mas muito bem feito porque conseguimos retirar as vitimas e recuperar quase tudo”, conclui o físico.
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Antiga Vigilância Sanitária sedia atualmente o Centro de Assistência aos Radioacidentados (Cara) (Foto: Paula Resende/ G1)